Viver na periferia



Diria que a condição de viver na periferia é algo que pode ser tratado como uma vivência relativa e que, por isso, se constitui através de vários aspectos distintos. Afinal, o que é a periferia? Ou melhor, o que seria uma noção de periferia? Constato que esta pode ser definida como a ideia de um espaço – físico ou virtual – que objetiva ou subjetivamente está à margem de um centro pré-definido. Sendo assim, suponho que essa noção de periferia pode ser enquadrada tanto em referência às favelas quanto aos condomínios de luxo; tanto em referência às cidades-dormitório e zonas rurais quanto aos países do considerado Sul-Global.

Em todos esses exemplos, temos ambientes que são periféricos, e só são pois se definem pelos seus respectivos centros. As cidades-dormitório e as zonas rurais são periferias em relação a qualquer centro urbano. Já os países do Sul-Global – vistos como subdesenvolvidos ou emergentes – são periferias em relação aos países do Norte-Global, isto é, em relação àquele grupo seleto de nações historicamente constituídas como desenvolvidas. No caso específico das favelas, entendo que elas são mais periféricas do que as outras, e isso se daria por uma construção social e hierárquica de classe e etnia, de tal modo que, mesmo que essas favelas estejam dentro dos centros urbanos, esse fator social e político as coloca novamente às margens. 

Já no caso específico dos condomínios, os entendo como periferias não só pelo fato de, em muitos casos, acabarem se alocando longe dos centros devido a uma alta demanda por espaço que essas construções exigem, mas pelo fato de que, mesmo que não fosse o caso, ou seja, mesmo que esses condomínios fossem construídos próximo ou mesmo dentro dos centros urbanos, ainda assim estaríamos lidando com um tipo de construção que, em sua essência, se coloca de maneira a se isolar do contato externo, independentemente de serem de luxo ou não, porém com a consideração de que, quanto maior o poder aquisitivo dos moradores maior é a demanda por segurança e, consequentemente, por isolamento. O caso dos condomínios é interessante, pois coloca em evidência que a periferia não se define apenas por um critério estrutural — sua relação com a noção de centro —, mas também por um critério arbitrário, próprio daquele sujeito que fez a escolha de se isolar.

Apesar de todos esses exemplos integrarem, em alguma medida, um mesmo grupo, é evidente que nenhum deles se constitui a partir dos mesmos fenômenos. De tal forma, para se analisar o que seria viver na periferia, deve-se levar em conta o tipo de periferia que está sendo buscada. Além do que foi dito, basta uma simples pesquisa na internet sobre o que é viver na periferia para se perceber novamente essa relatividade: trazendo o caso europeu, é possível se deparar com propagandas em formato de artigo, escritos por sites de corretoras de imóveis, que explicitam as vantagens de se morar na periferia. 

Percebe-se ali a existência de um discurso sobre no qual a periferia, de acordo com a experiência europeia, pode perfeitamente vir a ser sinônimo de qualidade de vida, de uma oportunidade de escapar dos centros urbanos, tão caóticos e estressantes, principalmente para aqueles que possuem família. Essa mesma ideia pode ser refletida quando pensamos naqueles bairros norte-americanos bastante familiares para nós, consumidores históricos do American Way of Life, e que são tão idolatrados até os dias de hoje. São esses lugares cheios de famílias, casas grandes, poucas cercas, grama verde… De fato, uma síntese da bastante conhecida utopia suburbana. A periferia, nesse sentido, é um lugar onde se deseja estar, onde se deseja viver.

Em contrapartida, quando se pensa na periferia em contextos mais aproximados – refiro-me a Brasil e, de uma maneira geral, América Latina –, a visão é completamente diferente: sua concepção vai de encontro com um olhar do senso-comum sobre a periferia que é muito mais estigmatizado – são lugares que se enquadram na breve argumentação que fiz anteriormente sobre o caso das favelas. Nessas periferias, a pobreza, a violência e a falta de infraestrutura é, em muitos casos, aquilo que mais se nota. 

Dessa forma, são essas periferias não lugares de oportunidade, como descrevi antes, mas sim de necessidade, a tal ponto de que a própria meta de viver nesses locais é posta em cheque, dando lugar à meta de sobre-viver. Sendo assim, a relatividade do que é uma periferia implica diretamente na relatividade do que é viver na mesma. Isso não significa dizer que as coisas não se misturem, isto é, que não haja periferias como oportunidade na América Latina e periferias como necessidade na Europa, contudo, é notável que a construção histórica dessas periferias, a depender de onde se localizam, é bastante distinta.

Não obstante, pretendo trazer para esse texto uma argumentação sobre viver na periferia que seja mais coerente com os contextos latino-americanos. Como já deixei evidenciado, a periferia não se constitui por um local específico, como comumente aparece. Na verdade, a periferia se trata mais de uma noção que se enquadra em vários tipos de contextos. Com isso, não é só o morador de uma favela latino-americana que é um periférico, mas o sujeito latino-americano como um todo detém essa marca, sendo as suas vivências, apesar de distintas, semelhantes em alguma medida. A questão, nesse caso, é saber que medida seria essa.

Acredito que um dos lugares onde pode-se encontrar a resposta para essa pergunta está na dependência que a periferia latino-americana tem pelos seus centros, por exemplo: em se tratando de Brasil, um território colonizado, temos um país que é historicamente influenciado, no desenvolvimento de suas relações, por contextos externos. Essa influência será responsável por moldar o que é o "ser brasileiro", de tal modo que dependemos dela para que tal identidade faça sentido, onde só aí poderemos construir a sociedade brasileira. Essa dependência nos atravessa e se materializa no sistema capitalista que tanto acompanhou o processo de colonização. Esse é o nosso paradigma. Em suma, por esse motivo, viver na periferia é viver sob essa dependência a que me refiro.

Considerando o Brasil, um país extremamente vasto e diverso, minha intenção não é em nenhum momento equivaler as vivências de pessoas pertencentes a contextos completamente distintos, isto é, um brasileiro negro e favelado dificilmente terá vivências semelhantes a de um brasileiro branco e burguês. Quando busco a medida de semelhança entre esses dois tipos de indivíduos – e em muitos outros tipos –, não busco nas vivências em si, mas na lógica que guia as vivências de cada um, sendo essa lógica a da dependência. De tal modo, caracterizo o viver na periferia como um viver baseado na dependência pelos seus centros.

Dessa forma, tendo novamente em mente os extremos, coloco que tanto aquele periférico pobre quanto o rico são rodeados por um círculo de dependência que é de origem externa e centralizante. Os periféricos pobres dependendo, por exemplo, dos centros urbanos e os periféricos ricos dependendo, por exemplo, dos chamados países desenvolvidos para que só assim, num sentido mesmo de subordinação, possam eles, sujeitos periféricos que são, construir suas inter-relações com outros sujeitos em sociedade. Relações essas que não são apenas sociais, mas são também econômicas, políticas, ideológicas e identitárias.

Por Gabriel Monteiro Pinto.

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