Pensar a possibilidade, viver a interculturalidade: desafios para as cidades contemporâneas

A cidade, enquanto formato dominante de espaço público atual, e, nela, os sentidos para o que é comum, colocam-se de maneiras problemáticas na vida contemporânea, exigindo ressignificações consistentes e corajosas, que apontem alternativas à matriz do iluminismo e à matriz do capitalismo industrial. Esta é uma reflexão ainda embrionária e que precisa livrar-se dos grandes entulhos teóricos e práticos que confinam as formas de pensar nos cânones da Ciência moderna. É preciso, então, pensar fora desses cânones, pensar de modo alternativo, para acolher possibilidades outras de estar e significar os espaços públicos contemporâneos – em particular, a cidade.

Pensar de modo alternativo será, portanto, pensar em alternativas a um sistema econômico impositivo e avassalador, alternativas a um uso expropriador e explorador dos meios naturais, alternativas às formas capitalistas de produção e de consumo, alternativas à projeção de megacidades enquanto lugares do habitat e do conviver, alternativas às relações com os outros e com as outras culturas, alternativas às atuações políticas, governamentais ou não governamentais, alternativas à resistência civil. Estas são dinâmicas sociais que podem ser entendidas como formatos que nascem de seus duplos e lhe fazem frente. Tais dinâmicas estão já conhecidas e até acomodadas nos cenários contemporâneos e a eles atribuem sentidos.








Há, no entanto, o não organizado e também alternativo a um modelo normativo vigente: o que nem está nos conjuntos de saberes nem nas lutas sociais formais, e que está no mundo, de modo errante, a significá-lo, interpretá-lo, preenchê-lo e a produzir sentidos que escapam aos manuais das lutas, às Ciências e à Filosofia – em uma palavra, fora da lógica moderna. São indivíduos e grupos culturais que se encontram nos espaços públicos, produzem sobre eles, retiram e oferecem contribuições.

São jovens, idosos, moradores das periferias das grandes cidades, exilados e refugiados, crianças, mulheres e homens que não estão integrados a lutas sociais organizadas, não respondem a uma instituição política e não necessariamente formam um grupo identitário. Mas formam os espaços públicos, porque neles transitam, e neles participam na construção, processual e dinâmica, dos sentidos daquilo que é comum nessa vida social.

Sobre estas alternativas, faz-se urgente o desenvolvimento de um pensamento que as compreenda e as coloque em diálogos e em condições de colaborar no coexistir em espaços públicos e de a estes atribuírem sentidos e significados reconhecidos como válidos – e não apenas alternativos. Essa reflexão defronta-se com os desafios epistemológicos de uma redefinição necessária dos termos do debate atual sobre o que é e como compreender a diversidade de definições do bem comum e de seus usos e sentidos. E aponta para a noção de possibilidade como lócus de construção desse pensamento e para a noção de interculturalidade como lócus de mobilização política desse pensamento.

Uma epistemologia da possibilidade exige, apenas, prontidão para pensar fora e distanciado das categorias universais, para pensar com o desconhecido, com a incerteza, com a inexatidão, com a emoção. Trata-se de uma epistemologia assentada na interculturalidade e no reconhecimento de saberes, de práticas e de outras errâncias da vida contemporânea. Uma epistemologia que se desvencilha da Ciência moderna, uma vez que para esta apenas tem valor aquele conhecimento advindo da razão e demonstrado objetivamente.

Frente ao silenciamento das diversidades culturais, imposto pela centralidade e pela magnitude da Ciência moderna – como também da teologia monoteísta dominante e da lógica imperialista do capitalismo monetário, desafia-nos o reconhecimento de outras formas de viver, sentir e significar as cidades atuais. Estas diversas formas de conhecer e viver a cidade (afetiva, sensorial, mágica, espiritual, subjetiva,...) trazem à tona uma proposta contemporânea de convivência intercultural do diverso e do diferente na elaboração sobre o mundo em que vivemos.

Neste mundo, preenchido de espaços públicos multiculturais manifestados nas cidades, a constatação das diferenças configura alternativas para estar neles e desafia a olhar para o presente, enquanto lócus de possibilidades reais. Pensar possibilidades para o presente é convocar a mente para fora da virtualidade do passado, do futuro e do tecnológico e recentrar nosso estado e nosso papel nas cidades contemporâneas, espaços públicos de relações e interações, em busca da interculturalidade.

Por Giuseppa Spenillo.

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